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Eu quero levar uma vida moderninha

Deixar minha menininha sair sozinha

Não ser machista e não bancar o possessivo

Ser mais seguro e não ser tão impulsivo

Mas eu me mordo de ciúme.

(Ultrage a Rigor)


Será que podemos vivenciar um relacionamento amoroso sem sentir ciúmes?


Será que quanto mais amamos alguém mais ciúmes sentimos?


A fórmula que aprendemos do que é o amor vem com diferentes ingredientes.


Diferentes no sentido de diversos e, também, no sentido de que cada sujeito tem uma fórmula singular.


Por isso que, às vezes, temos dificuldade em nos sentirmos amados pelo outro sem medir esse amor pelas manifestações de ciúme.


Parece ser que o ciúme é comumente utilizado como um termômetro do amor.


Se pararmos bem para pensar, desconfiamos do amor sem ciúme: “ele/ela diz que me ama, mas não demonstra”.


Mas o que é isso, o ciúme?


O ciúme é um sentimento, um afeto, e bem sabemos o quanto pode afetar nossa vida.


Mas pode ser, também, uma forma de agressividade.


Antes de tudo, uma violência contra si mesmo, dependendo da intensidade que adquire, e uma agressividade contra o outro, quando esse passa a sofrer os efeitos do que o parceiro sente e direciona para ele.


Quando somos assaltados pelo ciúme nossa vulnerabilidade vem à tona, o que conversará, diretamente, com o nosso narcisismo, abrindo uma ferida narcísica quando nos damos conta, seja no mundo fático ou na nossa fantasia, que o nosso bem amado poderá preferir, desejar ou amar mais outra pessoa.


Agrega-se a esse mal estar o desprazer provocado pelo próprio ciúme em si.


Como sentimento que é, e sabendo que nada que é do ser humano nos é estranho,


Freud escreveu que quando alguém diz nada saber sobre o ciúme, ocorreu a repressão do mesmo.


Nas palavras dele: “se alguém parece não possuí-lo, justifica-se a inferência de que ele experimentou severa repressão e, consequentemente, desempenha um papel ainda maior em sua vida mental inconsciente (FREUD).


Pode ainda, que tenha ocorrido uma certa pacificação com o nosso próprio narcisismo, com a consciência que o amor não é destinados a nós pelo simples fato de existirmos.


Quando sentimos ciúmes de forma intensa, percebemos o quanto esse sentimento é invasivo, consumindo muito da nossa energia, alterando o curso dos pensamentos e, como consequência, dos afetos. Ao mesmo tempo que torna real o vínculo, “isso existe”, recobre a relação com fantasias “tenho certeza que tem alguma

coisa aí”.


O ciúme captura o sujeito, uma vez que o ciumento passa a viver, em grande medida, em situação de vigília do que o outro faz, sente e pensa. A parceria principal passa a ser ciúme-ciumento, ao mesmo tempo que a parceria amorosa vai se desgastando e virando um jogo de controle e certezas.


O fato é que, respeitadas as situações em que realmente existe insinuações e traições ou, ainda, um quadro de ciúme induzido por uma quarta pessoa que constrói uma narrativa para o ciumento, o ciúme não necessariamente tem haver com o comportamento do outro, mas sim com a posição na qual o sujeito se coloca diante do outro, diante de si mesmo e como parte da relação.


Mas antes do ciúme ser ciúme, vamos pensar na inveja que deixou latente esse espaço desde a mais tenra idade.


Todos tivemos inveja da mãe (ou de quem exerceu a função materna) que tudo tem, ao mesmo tempo que nós não temos, ou seja, somos faltantes, o que tira nossa posição de identificação ao falo ou de lugar fálico.


A mãe, nosso primeiro objeto de amor, terá o alimento, o amor, o calor, a nossa sobrevivência nas mãos e, ainda, o poder de acolher e ser generosa, pelo menos o suficiente (como nos fala Winnicott, uma mãe suficientemente boa) para que possamos integrar coisas boas, nos nutrirmos para o momento em que entrar o pai na triangulação o ciúme não nos consumir, não ser persecutório, nem ser uma competição muito selvagem.


Se, em um primeiro momento, somos afligidos pela inveja da mãe que tudo tem, quando assentamos uma relação boa com ela, com elementos baseados no amor e acolhimento e não no medo, abandono ou castigos, em um segundo momento vamos ter ciúmes quando vemos que a atenção, tempo e recursos dela não se destinam somente para nós, mas que não será sentido de maneira tão intensa ou devastadora.


Se entre mão e filho, que são somente dois, que é a fórmula da inveja, houver dificuldades, quando houver três, que é a fórmula do ciúme, a tendência é a intensificação das dificuldade. Nesse sentido, Melanie Klein escreve que "A inveja é o sentimento irado de que outra pessoa possui e desfruta de algo desejável – sendo o impulso invejoso tirá-lo dela e espoliá-lo. Além disso, a inveja implica na relação do indivíduo apenas com uma só pessoa e remonta à mais primitiva relação exclusiva com a mãe. O ciúme se baseia na inveja, mas envolve uma relação com, pelo menos, duas pessoas; diz respeito principalmente ao amor que o indivíduo sente como lhe sendo devido e que lhe foi tirado ou se acha em perigo de sê-lo, por seu rival".


Com a entrada do pai, ou de quem faça a função paterna, daremos início ao complexo de Édipo, que é marcado pela rivalidade, competição e disputa (imaginária) do objeto de amor.


Nesse primeiro round, perderemos sempre.


Perdemos nosso primeiro objeto de amor, com toda a frustração e decepção que isso acarreta e que deixará sua marca anímica, certos que o amor e atenção da mãe não se destina somente para nós.


“É fácil perceber que essencialmente se compõe de pesar, de sofrimento causado pelo pensamento de perder o objeto amado, e da ferida narcísica [...] de sentimentos de inimizade contra o rival bem-sucedido e de maior ou menor quantidade de autocrítica”. (FREUD).


Em um segundo momento, passaremos a reconhecer uma mãe não fálica, ou seja, faltante, o que fará ser possível desejarmos outros objetos para suprir as nossas faltas, inclusive com a ilusão de que um dia iremos encontrar um outro que preencha completamente essa falta, uma metade da laranja perfeita, o objeto “a” que, novamente, nos conduzirá a releituras de frustação e decepção, uma vez que a completude é da ordem da fantasia.


Por ventura, pode ocorrer de formarmos uma compulsão pela busca do objeto “a”, alguém que nos satisfaça em todas as necessidades quase que imediatamente e adivinhatoriamente, cobrindo nossas necessidades, como a mãe fazia.


Quando acreditamos ter encontrado esse objeto, tendemos a, compulsoriamente, tentar controlá-lo para jamais voltar a sentir a dor da perda, o desemparo existencial.


Mas, além do pai, o ciúme também poderá ficar marcado pela disputa da atenção da mãe entre irmãos e irmãs.


Começa com o que Lacan vem pontuar como Complexo de intrusão, quando os irmãos vem habitar o mesmo mundo que nós, cuja posição de pequeno imperador, como denomina Freud, passa a ficar em risco, restando claro que os pais querem algo além de nós.


Parece ser claro que o ser humano compete porque é da sua natureza: mas a voracidade de cada um vai ser diferente, de acordo com a nutrição de afeto que teve, e que tem, com os seus vínculos.


Nas etapas posteriores, adolescente/adulto, vamos passar a ter contato com o sentimento de paixão, momento onde o ciúme fica potencializado.


Isso porque a dinâmica da entrega na paixão é massiva: damos para o outro quase tudo que temos, inclusive nossas melhores qualidades e características. Como damos muito, o nosso Eu (Ego) fica empobrecido, próprio da dinâmica da paixão.


Na obra “Introdução ao narcisismo”, Freud sobre a oposição do Eu e da libido do objeto na paixão, escreve: “quanto mais se entrega a uma, mais empobrece a outra (...). No estado de enamoramento ele se apresenta como um abandono da própria personalidade em favor de um investimento de objeto.”


Lógico que, se o nosso melhor está no outro, teremos mais receio de perdê-lo, seria como perder uma parte nossa porque, se o outro nos troca por outra pessoa ou some, parte nossa some também e se instaura um vazio devastador.


Basicamente, a paixão é uma bomba relógio quando o apaixonado tem um ego desnutrido, uma desvalorização si, inveja latente e, por consequência, um ciúme muito potente.  “O amor é coisa séria demais para ser deixada nas mãos unidas dos apaixonados”. (ALLOUCH)


Nessa situação, a ferramenta que o sujeito passa a fantasiar que tem é o controle do outro. "Fantasia como parcela da atividade psíquica que se mantém independente do princípio da realidade e submetida unicamente ao princípio do prazer". (ROUDINESCO e PLON)


Isso pode conduzir a um pensamento paranoide, cujo objetivo é ter certeza do que acredita - e teme - ser verdade.


Essa situação pode ser perigosa se houver uma atuação, uma ação sem pensamento que a antecede. Temos os números de agressões e feminicídios que confirmam isso todos os dias: os chamados, até a pouco tempo, crimes passionais ou crimes contra a honra, e que poderíamos nomear crimes de ciúmes.


Nesse sentido, Mallmann escreve que o ciúme torna-se patológico quando resta “contaminado pela fixação nos conflitos edípicos não integrados e superados. E essa patologia se estende desde as queixas expressas no ciúme projetado e delirante até asatuações extremas, os crimes passionais”.


No escrito “Alguns mecanismos neuróticos no ciúmes, na paranoia e no homossexualismo”, de 1922, Freud elenca três tipos de ciúmes: o projetivo, o neurótico e o delirante e quanto eles podem ser, em maior ou menor medida, perturbadores.


O ciúme neurótico ou concorrencial é que o costuma fazer parte da nossa vida quando nos colocamos em dualidade com quem deseja o mesmo que nós, servindo, muitas vezes, para sustentar o erotismo do próprio casal. Freud salienta que, “esse ciúme, mesmo que o chamemos de normal, não de forma alguma racional, isto é, oriundo de vínculos atuais, proporcionais às efetivas circunstâncias e inteiramente dominado pelo Eu consciente, pois ele está profundamente arraigado no inconsciente, prolonga as mais antigas emoções da afetividade infantil e nasce do complexo de Édipo”.


O ciúme projetado, em virtude da negação ou da repressão, é uma defesa diante da incapacidade e intolerância de lidar com esse sentimento. Para que possamos nos livrar de senti-lo, projetamos no outro (“o ciumento é você, não eu”). Ademais, Freud pensa na possibilidade de que o desejo de trair, ou a própria traição, pode ser do ciumento que, não se responsabilizando e assumindo para si esse desejo ou ação, projeta no outro, ocultando assim, seus desejos.


Como nos indica Freud, “o desejo (Wunsch) é, antes de mais nada, o desejo inconsciente. Tende a se consumar e, às vezes, a se realizar.


Por isso é que se liga prontamente à nova concepção do sonho, do inconsciente, do recalque e da fantasia -

realização alucinatória do desejo. (ROUDINESCO e PLON)


O efeito colateral da projeção é a insegurança que acaba por gerar, especialmente quando o companheiro começa a tentar dar provas de que não deseja ou ama outra pessoa, abrindo espaço para o pensamento obsessivo “se está tendo que provar é para ocultar algo”.


O casal, muitas vezes, passa a se anular mutuamente nessa dinâmica de provas de amor e fidelidade se ambos se utilizarem da projeção.


Mallmann destaca ainda que, segundo Freud, “a fidelidade tem um preço que são as constantes tentações à infidelidade. O sujeito obtém alívio dessa pressão e a absolvição da consciência projetando seus próprios impulsos à infidelidade no companheiro a quem deve fidelidade”.


Nesse caso, a renúncia de ceder a infidelidade, ocorre a inversão do “eu quero trair” para “você quer me trair”.


No caso do ciúme paranoico ou delirante, o diferencial está na certeza que o ciumento tem que está perdendo o seu objeto de amor, enquanto no ciúme neurótico e no projetado impera a dúvida. Freud traz a ideia que no ciúme paranoico possivelmente estará presente o desejo por alguém do mesmo sexo e é sentido como um retorno de ódio que vem de alguém que desejamos: “Eu não o amo, é ela que o ama (...)”, “eu não o odeio, ele me odeia”, podendo acarretar rompantes violentos.


Em outras palavras, “o ciúme paranoide tem sua origem em impulsos reprimidos no sentido da infidelidade, mas o objeto, nestes casos, é o mesmo sexo do sujeito. O ciúme delirante é o sobrante de um homossexualismo” (FREUD).


Mallmann salienta que “os dois tipos de paranoia, o ciumento e o persecutório, projetam para o exterior o que não querem ver em si mesmos. Mas não projetam no vazio, e sim na mente inconsciente dos outros”.


É essencial ter em conta que, muitas vezes, o ciúme e a triangulação fazem com que a sexualidade fique vívida no sujeito, como escreve Facci: “é muito comum que o ciumento, para sustentar o desejo sexual, precise de um terceiro elemento na relação.


A ameaça da perda, a mulher com outro, não é incomum. Isso pode sustentar o desejo sexual”. (LIMA)


Segundo Kernberg, a triangulação pode ocorrer, essencialmente, com duas formas de fantasias: A fantasia inconsciente de ambos os sexos de um terceiro excluído, um membro idealizado do gênero do sujeito – o temido rival replicando o rival edípico.


Todos os homens e todas as mulheres, inconsciente ou conscientemente, temem a presença de alguém que seja mais satisfatório para seu parceiro sexual: este terceiro temido é a origem da insegurança emocional na intimidade sexual e do ciúme como um sinal de alarme, protegendo a integridade do casal.


A fantasia compensadora, vingativa, de envolvimento com outra pessoa além do parceiro sexual, um membro idealizado do outro gênero, que representa o objeto edípico desejado, estabelecendo, assim, um relacionamento triangular no qual o sujeito é cortejado por dois membros do outro gênero, em vez de precisar competir com o rival edípico do mesmo gênero pelo objeto edípico idealizado do outro gênero.


Como a fantasia é sempre subjetiva e singular, a triangulação pode, ao contrário, ser um lugar de angústia para o sujeito, levando-o a se afastar do companheiro pela mesma razão que alguém pode ser capturado.


Por isso que, como diz Facci, “na psicanálise, escutamos a fantasia como se fosse a janela pela qual cada um enxerga o mundo”. (LIMA)


Esse ponto nos leva a um questionamento importante: o que é possível fazer com o sentimento de ciúme quando consome o sujeito, o conduzindo para um estado de sofrimento?


Lacan nos indica um caminho quando escreve que a travessia da fantasia (fundamental) se dá em análise, quando essa é eficiente, “materializada nem remanejamento das defesas e numa modificação de sua relação com o gozo”, movendo algo no sujeito da “sujeição originária do sujeito ao Outro”. (ROUDINESCO e PLON)


Entender que nós podemos gozar com o que nos traz sofrimento, muitas vezes numa repetição do que aprendemos como amor, como parte das relações, tanto do que vivenciamos na nossa infância como do modelo dos nossos pais e das sucessivas relações que vamos tendo ao longo da nossa vida, é essencial.


Para isso a psicanálise pode ser de grande valia, para nos colocar em movimento, nos permitir sair das fixações que nos engessam em um gozo na dor - compreendendo que as pulsões 5 não são regidas pelo princípio do prazer e que tem por finalidade a satisfação a qualquer custo, nem que seja a nossa própria saúde mental e física.


Para tornar possível relacionamentos mais saudáveis, algo precisará, possivelmente, ser elaborado, ademais de poder ser pensado, porque o nosso inconsciente estrutura montagens gozando com o sofrimento, com a compulsão a repetição se aliançando com a pulsão de morte.


Ao mesmo tempo que o “personagem tomado pelo ciúme aquece a história (...) na vida cotidiana, o personagem do psiquismo, criação neurótica, é danoso e atrapalha o laço com o outro, nestes casos um analista é um escritor às avessas, o divã é o teclado da ressignificação. (CLIMACO DE FREITAS)


Mas é importante frisar que podem haver limitações da própria análise em alguns tipos de ciúmes, como no caso do ciúme delirante, paranoico, que não costuma prosperar, como o próprio Freud frisou em seu tempo.


Para adentrarmos no nó do ciúme no percurso de uma análise, será necessário ir buscando a cadeia de significantes, que são “elementos significativos do discurso (consciente ou inconscientemente) que determinam os atos, as palavras e o destino do sujeito, à sua revelia e à maneira de uma nomeação simbólica”. (ROUDINESCO e PLON)


Primordialmente, como escreve Lacan, não falamos de outra coisa que não de amor em análise, o que nos dá uma direção para começar: o que o sujeito entende por amor, o que ficou registrado como vínculo amoroso e o próprio sentimento do amor que nos coloca em movimento, por colocar em marcha um querer sempre mais, abrindo caminho para a possibilidade de vivenciar uma experiência transformadora.


Por fim, a análise pessoal poderá proporcionar o reconhecimento dos nossos limites e os limites que os outros nos apresentarão e, especialmente, o limite do nosso poder de controlar, permitindo um delineamento de novas formas de amar. Isso porque contaremos com a transferência, ou seja, a aliança afetiva entre paciente e analista, capaz de dar manutenção aos vínculos através de experiências emocionais

reparadoras” (DIAS MARTINO), pois é no vínculo de um ser humano com outro que são formados os contornos dos relacionamentos.

 
 
 

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