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Já fui loura, já fui morena, 

já fui Margarida e Beatriz. 

Já fui Maria e Madalena. 

Só não pude ser como quis.

Cecília Meireles.


A história nos posiciona com um olhar direcionado para o feminino com

traços de curiosidade pelo seu mistério, como se o feminino detivesse um

poder de encantamento, como os mitos nos revelam em múltiplas estórias.

Frequentemente são reproduzidas frases escritas por grandes

psicanalistas, isoladas do contexto, sinalizando a mulher como uma incógnita:

“Não existe a mulher”, frase ícone de Lacan, ou quando Freud, no final do seu

trabalho, escreve que não decifrou “o que quer uma mulher”.

No entanto, basta recordar que Freud foi o grande decifrador dos

enigmas da mente humana que virou do avesso as doenças mentais atribuídas

às mulheres, como a histeria. Foi ele quem parou para realizar a escuta, que

deu crédito para as dores daquelas mulheres, “las extrae del silencio en las

que las condenaban las condiciones de sujeción de su época, en lo que

concierne a sus deseos” , sistematizando em livros e escritos suas conclusões,

com toda causa e efeito. Assim como Lacan que disse “não existe A mulher”,

fazendo referência a singularidade e a complexidade da subjetividade de cada

mulher, como sujeito. Foram grandes avanços no olhar desconfiado e intrigado

sobre o feminino: Quem é esse ser que canta e encanta, como a sereia? Ela

sobreviverá aos marinheiros e os marinheiros sobreviverão aos seus

encantamentos? O que eles desejam pescar? O desejo da sereia.


O desafio parece ter sido o desejo feminino: espelho, espelho meu,

quem ousa desejar mais do que eu? (Dizia o masculino na frente do espelho).

O masculino, por séculos, posicionou o feminino como um objeto ao seu dispor,

para sua satisfação (basta olhar os números de estupro e abuso sexual atuais

para perceber a repetição dessa objetificação da mulher para a satisfação do

prazer masculino). Diante da verdade e realidade dos nossos tempos (como

preconiza Bion) em que a mulher é um ser desejante, pergunta-se: como o

masculino está encarando o desafio de não poder se apropriar e manusear o

feminino?

A violência empregada contra a mulher, o feminicídio, os estupros e

abusos nos dão uma pista: em grande medida, mal. No momento que outros

meios não funcionam para estabelecer o “lugar da mulher”, usa-se a força e a

violência contra ela.

O que é isso, o masculino? Quem sabe seja necessário nos

perguntarmos. Parece haver uma crise de identidade e identificação decorrente

da perda de um pedestal cultural, que não o pertencia, com o peso de muito

sofrimento do feminino.

Miller nos leva a essa reflexão quando escreve:


(A mulher) é o Outro que não tem, o Outro do não-ter, o Outro do

déficit, da falta, o Outro que encarna a ferida da castração, o Outro

atingido em sua potência. A mulher é o Outro diminuído, o Outro que

sofre e, por esse viés, igualmente o Outro que obedece, que se queixa,

que reivindica, o Outro da pobreza, do desnudamento, da miséria, o

Outro do qual se rouba, com o qual se falta, que se vende, no qual se

bate, que se mata…. o Outro submetido, e que não tem nada a dar,

exceto sua falta e os signos de sua falta.


Dentro da ordem civilizatória, como já nos mostrava Freud no seu

brilhante escrito “O mal estar na civilização”, o Estado nos posiciona como

detentores de direitos, sempre variantes e camaleônicos, de acordo com os

tempos e com os interesses de quem tem o poder de determinar o que é a Lei

e qual é a Lei. Hoje, as mulheres são detentoras de direitos, alguns mais respeitados do que outros.

Não por consciência dos Estados, mas por pressão

das próprias mulheres, internamente, e da Organização das Nações Unidas,

externamente, tais direitos vêm se consolidando dentro dos estados nacionais.

No entanto, o direito atua com atraso para romper os estigmas do

feminino e do masculino. Surge aqui uma importante pergunta: por que é difícil

fazer a inscrição de leis que impõe a igualdade entre homem e mulher, que

tentam colocar uma família com diretos e deveres iguais e efetivar leis que

barram a violência contra a mulher, o abuso, o assédio, o estupro, etc?

Para tanto, vamos recorrer à psicanálise. Acompanhamos, como

agentes, vítimas ou telespectadores, um sem fim de relacionamentos violentos

e abusivos e as mais diferentes desigualdades entre homens e mulheres que

acontecem na prática (como diferença salarial, representativa no poder

legislativo, licença maternidade/paternidade). Sobre os relacionamentos,

acompanhamos na clínica psicanalítica e no próprio sistema legal, a troca de

um parceiro violento e abusivo por outro, uma repetição inconsciente, na

maioria das vezes. Podem ser relacionamentos que batem diferente, que

machucam de forma distinta, mas que costumam acontecer e se manter no

tempo e no espaço.

A obra de Freud “Mais Além do princípio do prazer” revela que as

pulsões não obedecem ao princípio do prazer, nós não repetimos algo porque

nos dá prazer, mas sim por existir uma satisfação, muitas vezes sintomática.

Isso porque o conteúdo que gera essa repetição está recalcado, ou seja, nós

não queremos saber, pensar ou refletir sobre ele, e colocamos embaixo de um

tapete psíquico um maior entendimento sobre nossas escolhas, muitas vezes

porque não passou pelo nosso filtro do que consideramos digno, moral,

correto, etc.

Nesse sentido a psicanálise (análise pessoal) pode ser de alguma

ajuda, dando a possibilidade para termos a escolha de pagar por esses

desejos que nos saem tão caros (que são os relacionamentos abusivos, de

maltrato ou violentos) ou decidir não pagar por eles, conseguindo escapar da

compulsão à repetição. A consequência desse automatismo inconsciente é

muito potente e nos leva a desejar perfis muito parecidos de parceiros

românticos, por isso a essencialidade de poder ter uma reelaboração na clínica

psicanalítica.

Urge pensar, também, como é a delimitação social do que é uma

relação. Porque ademais do que sentimos, aprendemos o que compõe uma

relação com a cultura e nosso contorno social, com as pessoas com as quais

convivemos. Hoje, ainda, parece ser que a mulher assume uma

responsabilidade pela manutenção do relacionamento e faz sacrifícios em

nome dele, enquanto o homem parece seguir o retrógrado princípio da

confirmação da masculinidade, do ser homem, que busca manter a fidelidade

da mulher, supervisionar sua “moral” e zelar pela honra dele mesmo. Para

tanto, a construção do respeito e da permanência do outro costuma ser uma

desconstrução, porque é imposta pelo medo e não construída pelo afeto,

acolhimento e amor.

Partindo da lógica que o respeito somente existe para o outro quando

existe para si mesmo, a pergunta que nos inquieta é: quem respeita a si

mesmo se nossa educação estimula, no decorrer da nossa vida, a formação de

um falso self? Se nos relacionamos a partir de um falso self não podemos estar

respeitando o verdadeiro self, eu mesmo – em consonância com a nossa

verdade e com a realidade. No falso self entra na fórmula velhos ditames:

mulher tem que ser de um determinado modo – sentar, falar, dançar, etc -, que

vai dando os contornos da nossa personalidade, inclusive desse falso self

culturalmente incentivado.

O fato de que os nós do prazer e do desprazer não governem toda a nossa vida, de que haja sempre

uma camada prévia que permanece independente dessa captura pelo prazer/desprazer, não

significa que nós procuremos esse ponto de ruptura. 

A sociedade é fálica de um modo geral, e isso funciona, também, para

normalizar as relações abusivas mas que, cada vez mais, vemos surgir

questionamentos e movimentos de mudança de velhos paradigmas sobre o

masculino/feminino.

Diante desse cenário podemos pensar que, assim como no sujeito, na

sociedade, quem está tendo mais prazer não deseja mudar. Quem está tendo

satisfação ou benefícios vai levantar defesas para não mudar, sejam defesas

psíquicas, quando são sujeitos, ou resistências, quando é dinâmica social. Um

bom exemplo são as sentenças do poder judiciário que resistiam a aplicação

da Lei Maria da Penha ou nas que ainda fazem referência a legítima defesa da

honra (dos homens).

Vamos mudar o polo e pensar no masculino como aquele que sofre uma

intensa pressão social para ser másculo, forte, bravo, incansável e agressivo.

Esquecemos durante um lapso temporal da nossa história de incluir a mulher

como um sujeito composto também de diversos elementos, entre eles a

agressividade.

Tanto Freud quanto Lacan situam a agressividade "como constitutiva do

eu, na base da constituição do eu e na sua relação com seus objetos. Não

negam sua existência, ao contrário, afirmam a agressividade na ordem

humana, ordem libidinal”.

O que quer dizer que, apesar da agressividade ser intrínseca, temos o

recurso da palavra para fazer a mediação simbólica, não necessitando da via

física para encontrar vazão, ou seja, não precisa ser atuada. Também temos o

livre arbítrio, a ética, a moral, a educação, para não empregá-la para degradar

outra pessoa. Podemos ter o desejo de possuir alguém, mas sempre temos o

poder de decidir respeitá-la também. E isso se dá através de uma construção

do que devemos e do que podemos fazer, do conceito de castração que a

psicanálise traz como o estabelecimento de limites, com a inscrição do nome

do pai que Lacan apresenta, que é a inscrição das leis, normas, ética, etc., um

composto dos registros realizados pela “instituição” família.

Importa ressaltar que na adolescência a identificação não será mais com

os pais, mas com os pares, se dará no nosso contexto social: comportamento

dos amigos, nas dinâmicas de grupo, das músicas que escutamos, das

imagens que assistimos, do conteúdo online que acessamos, do que a cultura

define como certo e errado, como condenável ou aceitável, e, ainda mais, o

que essa cultura apresenta como papel do homem e da mulher - até mesmo

em um sentido utilitarista: o corpo do homem serve para quê? O corpo da

mulher serve para quê?

Essa é uma reflexão necessária por ser determinante nos estereótipos

do corpo da mulher como um espaço de prazer, hipersexualizado e o corpo

masculino como forte, potente e que se apropria do que deseja. Isso fica nítido

nos depoimentos de mulheres que sofreram abusos sexuais ou estupros - os

quais temos acesso diariamente através de jornais, revistas, entrevistas, etc.

Percebe-se uma tentativa de enquadramento em padrões femininos e

masculinos enraizados, o que força todos, de certo modo, alguns em uma

posição de mais vantagem que outros, a entrar numa forma e assumir esse

papel, tão pesado e massacrante, de ter que ser de uma determinada maneira

para ser reconhecido socialmente - e nas relações intimas também - tanto para

o homem como para a mulher. Esse enquadramento pode acabar gerando um

superego muito severo, carregado de culpas.

Essas reflexões parecem ser essenciais, entre tantas outras possíveis,

porque somente o direito não está dando conta de conter a violência contra as

mulheres e de estabelecer uma igualdade entre os seres humanos: o estado

pode impor leis, mas não uma mudança de paradigmas do que é ser homem e

do que é ser mulher, com todas as consequência que isso carrega.

Quando falamos de registro social, nos referimos a algo transitório e

mutável, porque a sociedade é camaleônica. A lógica fálica, que apresenta o

homem como sendo o falo ou como o detentor do falo e a mulher à margem

desse poder, está se adequando aos novos tempos, a uma nova comunicação

mais horizontal com as novas tecnologias que nos permitem escutar diferentes

vozes em diferentes cenários.

Vale ressaltar que Lacan apresenta o corpo como corpo da linguagem,

que nos fala como sujeito. Então a questão da diferença do sexo no corpo cai,

do corpo feminino submisso ao corpo masculino. A psicanálise pensa a partir

dos resíduos que estão no inconsciente.

Por fim, a dança entre psiquê, cultura e lei podem, quiçá, nos levar a

entender algo mais para, então, nos indicar o caminho para fazer novas

inscrições internas e externas.


Referências


CEVASCO, Rithée. De Freud a Lacan, la cuestión femenina. 2006.


DAVID-MÉNARD, Monique. Como ler Além do princípio do prazer? REVERSO

– Revista de Psicanálise. Vol. 37, nº. 69, Belo Horizonte, jun. 2015.


FERRARI, Ilka Franco. Agressividade e Violência. Psicologia Clínica. Vol.

18, nº. 2, Rio de Janeiro,  2006.


Miller, J. A. (2015). Mèrefemme. La Cause Du Désir: Revue de

psychanalyse, 89, 115-122.

 
 
 

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