- Lais Locatelli

- 29 may 2024
- 8 Min. de lectura

Já fui loura, já fui morena,
já fui Margarida e Beatriz.
Já fui Maria e Madalena.
Só não pude ser como quis.
Cecília Meireles.
A história nos posiciona com um olhar direcionado para o feminino com
traços de curiosidade pelo seu mistério, como se o feminino detivesse um
poder de encantamento, como os mitos nos revelam em múltiplas estórias.
Frequentemente são reproduzidas frases escritas por grandes
psicanalistas, isoladas do contexto, sinalizando a mulher como uma incógnita:
“Não existe a mulher”, frase ícone de Lacan, ou quando Freud, no final do seu
trabalho, escreve que não decifrou “o que quer uma mulher”.
No entanto, basta recordar que Freud foi o grande decifrador dos
enigmas da mente humana que virou do avesso as doenças mentais atribuídas
às mulheres, como a histeria. Foi ele quem parou para realizar a escuta, que
deu crédito para as dores daquelas mulheres, “las extrae del silencio en las
que las condenaban las condiciones de sujeción de su época, en lo que
concierne a sus deseos” , sistematizando em livros e escritos suas conclusões,
com toda causa e efeito. Assim como Lacan que disse “não existe A mulher”,
fazendo referência a singularidade e a complexidade da subjetividade de cada
mulher, como sujeito. Foram grandes avanços no olhar desconfiado e intrigado
sobre o feminino: Quem é esse ser que canta e encanta, como a sereia? Ela
sobreviverá aos marinheiros e os marinheiros sobreviverão aos seus
encantamentos? O que eles desejam pescar? O desejo da sereia.
O desafio parece ter sido o desejo feminino: espelho, espelho meu,
quem ousa desejar mais do que eu? (Dizia o masculino na frente do espelho).
O masculino, por séculos, posicionou o feminino como um objeto ao seu dispor,
para sua satisfação (basta olhar os números de estupro e abuso sexual atuais
para perceber a repetição dessa objetificação da mulher para a satisfação do
prazer masculino). Diante da verdade e realidade dos nossos tempos (como
preconiza Bion) em que a mulher é um ser desejante, pergunta-se: como o
masculino está encarando o desafio de não poder se apropriar e manusear o
feminino?
A violência empregada contra a mulher, o feminicídio, os estupros e
abusos nos dão uma pista: em grande medida, mal. No momento que outros
meios não funcionam para estabelecer o “lugar da mulher”, usa-se a força e a
violência contra ela.
O que é isso, o masculino? Quem sabe seja necessário nos
perguntarmos. Parece haver uma crise de identidade e identificação decorrente
da perda de um pedestal cultural, que não o pertencia, com o peso de muito
sofrimento do feminino.
Miller nos leva a essa reflexão quando escreve:
(A mulher) é o Outro que não tem, o Outro do não-ter, o Outro do
déficit, da falta, o Outro que encarna a ferida da castração, o Outro
atingido em sua potência. A mulher é o Outro diminuído, o Outro que
sofre e, por esse viés, igualmente o Outro que obedece, que se queixa,
que reivindica, o Outro da pobreza, do desnudamento, da miséria, o
Outro do qual se rouba, com o qual se falta, que se vende, no qual se
bate, que se mata…. o Outro submetido, e que não tem nada a dar,
exceto sua falta e os signos de sua falta.
Dentro da ordem civilizatória, como já nos mostrava Freud no seu
brilhante escrito “O mal estar na civilização”, o Estado nos posiciona como
detentores de direitos, sempre variantes e camaleônicos, de acordo com os
tempos e com os interesses de quem tem o poder de determinar o que é a Lei
e qual é a Lei. Hoje, as mulheres são detentoras de direitos, alguns mais respeitados do que outros.
Não por consciência dos Estados, mas por pressão
das próprias mulheres, internamente, e da Organização das Nações Unidas,
externamente, tais direitos vêm se consolidando dentro dos estados nacionais.
No entanto, o direito atua com atraso para romper os estigmas do
feminino e do masculino. Surge aqui uma importante pergunta: por que é difícil
fazer a inscrição de leis que impõe a igualdade entre homem e mulher, que
tentam colocar uma família com diretos e deveres iguais e efetivar leis que
barram a violência contra a mulher, o abuso, o assédio, o estupro, etc?
Para tanto, vamos recorrer à psicanálise. Acompanhamos, como
agentes, vítimas ou telespectadores, um sem fim de relacionamentos violentos
e abusivos e as mais diferentes desigualdades entre homens e mulheres que
acontecem na prática (como diferença salarial, representativa no poder
legislativo, licença maternidade/paternidade). Sobre os relacionamentos,
acompanhamos na clínica psicanalítica e no próprio sistema legal, a troca de
um parceiro violento e abusivo por outro, uma repetição inconsciente, na
maioria das vezes. Podem ser relacionamentos que batem diferente, que
machucam de forma distinta, mas que costumam acontecer e se manter no
tempo e no espaço.
A obra de Freud “Mais Além do princípio do prazer” revela que as
pulsões não obedecem ao princípio do prazer, nós não repetimos algo porque
nos dá prazer, mas sim por existir uma satisfação, muitas vezes sintomática.
Isso porque o conteúdo que gera essa repetição está recalcado, ou seja, nós
não queremos saber, pensar ou refletir sobre ele, e colocamos embaixo de um
tapete psíquico um maior entendimento sobre nossas escolhas, muitas vezes
porque não passou pelo nosso filtro do que consideramos digno, moral,
correto, etc.
Nesse sentido a psicanálise (análise pessoal) pode ser de alguma
ajuda, dando a possibilidade para termos a escolha de pagar por esses
desejos que nos saem tão caros (que são os relacionamentos abusivos, de
maltrato ou violentos) ou decidir não pagar por eles, conseguindo escapar da
compulsão à repetição. A consequência desse automatismo inconsciente é
muito potente e nos leva a desejar perfis muito parecidos de parceiros
românticos, por isso a essencialidade de poder ter uma reelaboração na clínica
psicanalítica.
Urge pensar, também, como é a delimitação social do que é uma
relação. Porque ademais do que sentimos, aprendemos o que compõe uma
relação com a cultura e nosso contorno social, com as pessoas com as quais
convivemos. Hoje, ainda, parece ser que a mulher assume uma
responsabilidade pela manutenção do relacionamento e faz sacrifícios em
nome dele, enquanto o homem parece seguir o retrógrado princípio da
confirmação da masculinidade, do ser homem, que busca manter a fidelidade
da mulher, supervisionar sua “moral” e zelar pela honra dele mesmo. Para
tanto, a construção do respeito e da permanência do outro costuma ser uma
desconstrução, porque é imposta pelo medo e não construída pelo afeto,
acolhimento e amor.
Partindo da lógica que o respeito somente existe para o outro quando
existe para si mesmo, a pergunta que nos inquieta é: quem respeita a si
mesmo se nossa educação estimula, no decorrer da nossa vida, a formação de
um falso self? Se nos relacionamos a partir de um falso self não podemos estar
respeitando o verdadeiro self, eu mesmo – em consonância com a nossa
verdade e com a realidade. No falso self entra na fórmula velhos ditames:
mulher tem que ser de um determinado modo – sentar, falar, dançar, etc -, que
vai dando os contornos da nossa personalidade, inclusive desse falso self
culturalmente incentivado.
O fato de que os nós do prazer e do desprazer não governem toda a nossa vida, de que haja sempre
uma camada prévia que permanece independente dessa captura pelo prazer/desprazer, não
significa que nós procuremos esse ponto de ruptura.
A sociedade é fálica de um modo geral, e isso funciona, também, para
normalizar as relações abusivas mas que, cada vez mais, vemos surgir
questionamentos e movimentos de mudança de velhos paradigmas sobre o
masculino/feminino.
Diante desse cenário podemos pensar que, assim como no sujeito, na
sociedade, quem está tendo mais prazer não deseja mudar. Quem está tendo
satisfação ou benefícios vai levantar defesas para não mudar, sejam defesas
psíquicas, quando são sujeitos, ou resistências, quando é dinâmica social. Um
bom exemplo são as sentenças do poder judiciário que resistiam a aplicação
da Lei Maria da Penha ou nas que ainda fazem referência a legítima defesa da
honra (dos homens).
Vamos mudar o polo e pensar no masculino como aquele que sofre uma
intensa pressão social para ser másculo, forte, bravo, incansável e agressivo.
Esquecemos durante um lapso temporal da nossa história de incluir a mulher
como um sujeito composto também de diversos elementos, entre eles a
agressividade.
Tanto Freud quanto Lacan situam a agressividade "como constitutiva do
eu, na base da constituição do eu e na sua relação com seus objetos. Não
negam sua existência, ao contrário, afirmam a agressividade na ordem
humana, ordem libidinal”.
O que quer dizer que, apesar da agressividade ser intrínseca, temos o
recurso da palavra para fazer a mediação simbólica, não necessitando da via
física para encontrar vazão, ou seja, não precisa ser atuada. Também temos o
livre arbítrio, a ética, a moral, a educação, para não empregá-la para degradar
outra pessoa. Podemos ter o desejo de possuir alguém, mas sempre temos o
poder de decidir respeitá-la também. E isso se dá através de uma construção
do que devemos e do que podemos fazer, do conceito de castração que a
psicanálise traz como o estabelecimento de limites, com a inscrição do nome
do pai que Lacan apresenta, que é a inscrição das leis, normas, ética, etc., um
composto dos registros realizados pela “instituição” família.
Importa ressaltar que na adolescência a identificação não será mais com
os pais, mas com os pares, se dará no nosso contexto social: comportamento
dos amigos, nas dinâmicas de grupo, das músicas que escutamos, das
imagens que assistimos, do conteúdo online que acessamos, do que a cultura
define como certo e errado, como condenável ou aceitável, e, ainda mais, o
que essa cultura apresenta como papel do homem e da mulher - até mesmo
em um sentido utilitarista: o corpo do homem serve para quê? O corpo da
mulher serve para quê?
Essa é uma reflexão necessária por ser determinante nos estereótipos
do corpo da mulher como um espaço de prazer, hipersexualizado e o corpo
masculino como forte, potente e que se apropria do que deseja. Isso fica nítido
nos depoimentos de mulheres que sofreram abusos sexuais ou estupros - os
quais temos acesso diariamente através de jornais, revistas, entrevistas, etc.
Percebe-se uma tentativa de enquadramento em padrões femininos e
masculinos enraizados, o que força todos, de certo modo, alguns em uma
posição de mais vantagem que outros, a entrar numa forma e assumir esse
papel, tão pesado e massacrante, de ter que ser de uma determinada maneira
para ser reconhecido socialmente - e nas relações intimas também - tanto para
o homem como para a mulher. Esse enquadramento pode acabar gerando um
superego muito severo, carregado de culpas.
Essas reflexões parecem ser essenciais, entre tantas outras possíveis,
porque somente o direito não está dando conta de conter a violência contra as
mulheres e de estabelecer uma igualdade entre os seres humanos: o estado
pode impor leis, mas não uma mudança de paradigmas do que é ser homem e
do que é ser mulher, com todas as consequência que isso carrega.
Quando falamos de registro social, nos referimos a algo transitório e
mutável, porque a sociedade é camaleônica. A lógica fálica, que apresenta o
homem como sendo o falo ou como o detentor do falo e a mulher à margem
desse poder, está se adequando aos novos tempos, a uma nova comunicação
mais horizontal com as novas tecnologias que nos permitem escutar diferentes
vozes em diferentes cenários.
Vale ressaltar que Lacan apresenta o corpo como corpo da linguagem,
que nos fala como sujeito. Então a questão da diferença do sexo no corpo cai,
do corpo feminino submisso ao corpo masculino. A psicanálise pensa a partir
dos resíduos que estão no inconsciente.
Por fim, a dança entre psiquê, cultura e lei podem, quiçá, nos levar a
entender algo mais para, então, nos indicar o caminho para fazer novas
inscrições internas e externas.
Referências
CEVASCO, Rithée. De Freud a Lacan, la cuestión femenina. 2006.
DAVID-MÉNARD, Monique. Como ler Além do princípio do prazer? REVERSO
– Revista de Psicanálise. Vol. 37, nº. 69, Belo Horizonte, jun. 2015.
FERRARI, Ilka Franco. Agressividade e Violência. Psicologia Clínica. Vol.
18, nº. 2, Rio de Janeiro, 2006.
Miller, J. A. (2015). Mèrefemme. La Cause Du Désir: Revue de
psychanalyse, 89, 115-122.
























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