- Lais Locatelli

- 15 jun
- 9 Min. de lectura
Quando eu te encarei frente a frente não vi o meu rosto
Chamei de mau gosto o que vi, de mau gosto, mau gosto
É que Narciso acha feio o que não é espelho...
(Caetano Veloso)

O narcisismo é uma fase do desenvolvimento infantil.
É a fase na qual a criança se sente o sol do universo - do seu próprio universo, infinito e particular.
É quando tudo é dela, para ela, em função dela e com ela,de forma grandiosa e onipotente, sendo o desejo dela imperativo: não há alegria na sua ausência e nem um outro com desejo próprio.
Até aqui tudo bem, porque é assim que tem que ser, é essencial, é necessário e é uma fase que deve ser vivenciada e madurada.
O narcisismo não se encerra, não finaliza nem desaparece: madura.
Nessa fase do desenvolvimento infantil, o narcisismo do infante é “inflado” e prepara o sujeito para a formação dos autos: autoestima, autopreservação etc. e, também, prepara para o que vem depois: o complexo de Édipo, o amadurecimento com a chegada das perdas, da inscrição do nome-do-pai, das castrações, da vida como é, sem a fantasia infantil.
Isso leva a maturidade.
Há um amadurecimento da fase do narcisismo infantil na medida que os pais, especialmente a função paterna, insere limites, apresenta a realidade (na medida do que a criança pode tolerar e compreender), ensina o essencial para que ela desenvolva autonomia, ética, moral, respeito e consideração pelo outro, por si mesma e pelo desejo de ambos, mesmo que sejam diferentes.
E, ainda, quando a libido que estava investida intensamente em si mesmo, como narra o Mito de Narciso, passa a estar disponível para investir em um outro também.
Tanto não ter vivido plenamente essa fase quando, então, faltará nutrição egoica para o que vem adiante (e é bem possível e provável que se siga buscando alguém que seja um provedor, como as funções parentais foram), como não ter encerrado essa fase (continuando o sujeito a demandar que o mundo o trate, satisfaça e entregue tudo o que acha que tem direito, e, por consequência, que os outros tem a obrigação de lhe entregar e proporcionar), serão um grande problema nas futuras relações que se desenvolverão pela vida.
Isso porque um outro será sempre alguém que não pode prover essa demanda e, se tentar, será sugado, drenado e, de certa forma, transformado em objeto cujo desejo passará a ser, em maior ou menor medida, desprezado.
Como quando uma criança está com fome e nem sequer consegue perceber que a mãe está cansada, exausta, dormindo, trabalhando ou ocupada com outras coisas, somente demanda o que necessita ou deseja.
A hora que quer, quer e pronto, a empatia é algo distante, abstrata e pouco aplicada.
E, assim como a criança usa todas as suas ferramentas para conseguir o que necessita, seja choro, chilique, agressividade ou chantagens emocionais engraçadinhas, o adulto que não vivenciou bem a fase do narcisismo infantil ou que não madurou essa fase no tempo adequado também usará.
Como escreve Holmes, “ser egocêntrico é aceitável e natural nos jovens, mas, se o “egoísmo” persiste na vida adulta, trata-se de uma falha de adaptação que pode causar comparados com a incapacidade ou a recusa de ver o mundo de outro modo que não o próprio ponto de vista, com a provável consequência de pisotear os sentimentos dos outros”.
Um corpo grande e uma mente adulta, apesar da imaturidade que carrega consigo.
Artimanhas, jogos de ciúmes, dramas, pressão, uso da força, gaslighting, ghosting, entre todo um arsenal de manipulação que usará para obter do seu provedor, seu nutridor, o que necessita.
E como as necessidades não são negociáveis, o sujeito pode até recuar, mas não deixará de exigir do outro, o que tem como consequência que as negociações entre os adultos ficarão prejudicadas.
Isso porque a demanda infantilizada não cessa e não tem a percepção de limite.
Quando alguém se propõe a se relacionar na vida adulta, possivelmente parte do pressuposto que o outro estará na mesma página, com o entendimento que um relacionamento é feito com base em trocas saudáveis e bons acordos, demandando, para tanto, do amadurecimento psíquico, quando esse acompanha o corpo que cresceu.
Só que, via de regra, num relacionamento com alguém que vive, ainda, o narcisismo primário, ou infantil, isso não se consolida.
Possivelmente esse sujeito, preso no narcisismo primário, fará promessas mentirosas, uma vez que já promete, porque não dá conta de cumpri-las, atirando, assim, para o futuro o que no presente não realiza.
A frustração passa a ser um elemento da relação: uma, outra, mais uma, outra mais e assim por diante.
Costuma, então, surgir o desejo do parceiro de mudar esse outro com quem faz par, com quem tenta vivenciar uma re lação, para torná-lo capaz de bem se relacionar, de tomar consciência do mal que causa, do estrago emocional e psíquico que gera.
Mas essa tentativa de inserir consciência no outro irá falhar, pois não é um simples saber que pode mudar o modus operandi, o jeito de ser e de se relacionar com o mundo que o outro opera.
Diante dessa tentativa, mais uma vez, ocorrerá um novo sentimento de frustração e, pior, de impotência e fracasso.
Agregado a isso podem emergir dores e sofrimentos porque, por mais que faça, que se doe, que seja o provedor emocional, amoroso, econômico, essa demanda infantil não perde a intensidade, não tem alívio e não dá respiro.
O maior problema ainda está por surgir: se essa entrega for escasseando, se o provedor de suprimentos começar a impor limites ou contrariar o “narcisista”, possivelmente as represálias começarão a tomar o lugar do que antes era estímulo para que o outro não parasse de fornecer.
E quem fornece pode começar a fazer represálias para que o outro volte a tentar estimulá-lo.
Essa dinâmica, quando intensificada, se torna destrutiva.
Gozarão os dois da dança da destruição, o primeiro desejando mudar o seu narcisista de estimação, aquele com o qual se tem um laço (ou um nó), e o segundo desejando submeter o outro aos seus caprichos.
Volta e meia perde-se a noção de onde começa a infantilidade de um e começa a fantasia do outro.
Quando se é ferido, desrespeitado, manipulado e usado como recarga narcísica, o desejo de vingança surgirá ou, como mínimo, o desejo que o outro reconheça o mal que fez e compense o sofrimento que causou.
Um dos participantes da dança da destruição tentará ser o juiz da causa, julgará o outro e pode ficar preso em exigir dele uma reparação - ou, ainda, buscar fazer justiça com as próprias mãos.
Isso provocará, possivelmente, uma reação em cadeia.
No final pode ocorrer a destruição de um, de outro, ou de ambos.
O fato é que ninguém sairá ileso dessa história.
Por mais que, na fantasia infantil, seja possível estar blindado dos efeitos que um relacionamento assim cause, o fato é que os afetos são aqueles que, por sua proximidade, intimidade e investimento libidinal, afetam.
Não raramente, quem está na posição de vítima de um sujeito cujo narcisismo não amadureceu, posterga o seu próprio bem-estar, felicidade e possibilidade de seguir adiante até acontecer um reconhecimento do outro da sua culpa, sua responsabilidade por fazer sofrer e uma reparação por isso, perpetuando o vínculo e os efeitos traumáticos dele.
Diante de tal impasse, o que resta, e o mais importante a ser feito, é se questionar o porquê de haver entrado nesse relacionamento – e permanecer nele.
Em primeiro lugar, reconhecer que o que move o amor costuma ser a busca do que falta em si e o desejo de reviver o que já foi vivenciado como amor anteriormente.
Por isso a repetição, no amor, está sempre na pauta do dia.
Como, logicamente, na infância todos passam pelas mãos dos outros, literalmente, (na mão da mãe, do pai, de quem cuida, alimenta e decide, desde o nome, até o estilo de ser e de se vestir, até o que será definido como certo e errado, aceitável ou reprovável) a fantasia de voltar a estar nesse lugar e que ele seja prazeroso pode conduzir o sujeito a se entregar de forma intensa, com a sensação de estar plenamente nos braços do outro, do par romântico.
Isso deixa uma bagagem de “é o outro quem sabe e eu, por amor, me entrego nas mãos dele”.
O que muda na singularidade de cada um é a intensidade dessa percepção e o quanto isso foi sendo dissolvido pelos pais, na medida que eles foram autorizando e ensinando os filhos a terem autonomia, independência, estilo, personalidade e desejos próprios.
Que os pais preservem para si esse poder e, como consequência, o controle que exercem sobre os filhos, não é raro e, pior, bastante recorrente.
Mesmo com as melhores intenções, se forma um destino perigoso para os filhos.
Essa situação pode deixar a porta entreaberta para um relacionamento com um sujeito “narcisista” acontecer, para um outro alguém controlador, que exerça um poder, tome assento na vida desses filhos, já adultos.
A intenção dos pais de preservarem esses elementos para cuidar e proteger decorrem, possivelmente, da falta de confiança no trabalho que fizeram junto aos filhos e assim, o progressivo encerramento da parentalidade fica prejudicado.
Ademais, o tema do narcisismo infantil pode estar presente nos pais, bem como outras dinâmicas familiares adoecidas.
Outro fator importante que pode ser pensado quando busca-se entender o porquê desse tipo de vínculo ter se formado é que, na fantasia, o outro seria um objeto de completude, entregando e preenchendo o que falta ao outro, e vice-versa.
Então, se falta narcisismo para alguém formar os autos, autoestima, autopreservação, amor-próprio, etc., pode ocorrer do sujeito ir buscar em alguém que tem um excesso evidente: saltará aos
olhos, o capturará.
E, literalmente, podem ficar cativos, capturados, dependentes que o outro entregue o que ele tem, por amor ou compensação do que recebe ou, ainda, que seja o modelo que ensinará como ser tão autocentrado, autoestimulado, com uma suposta força, autoestima e amor-próprio.
Na prática, a pessoa que se vincula a um “narcisista”, além de não receber o que procura, ainda será drenado, com uma fórmula de troca empobrecida.
Esse preenchimento com fantasia sobre “o que tem e quem é esse outro”, pode ser labiríntico e conduzir para caminhos sombrios, uma vez que a dificuldade de ver as coisas como elas são, de estar de acordo com a realidade, traz consigo a vulnerabilidade e a infantilidade, dificuldade de se responsabilizar, colocar limites e se separar.
O fato é que, quando se é adulto, a responsabilidade pas- sa a estar nas mãos do próprio sujeito, por mais tentativas de se passar as necessidades para as mãos dos outros, como crianças que choram quando não atendidas, como se não existisse outra alternativa ou solução.
Mas existem, e um processo de psicanalise é um deles, com um setting, um espaço preparado para olhar para as próprias faltas e necessidades de uma forma honesta e, então, fazer algo com elas, além de dar um novo destino às pulsões.
Enquanto o sujeito não for o seu provedor principal, ficará à mercê dos outros.
É possível ter encontros diferentes, sem estar preso em repetições, com mais consciência e maturidade, porque contar com a sorte é um meio arriscado de apostar a saúde emocional, psíquica e até física.
Ainda, é essencial a ciência do que é prazeroso para si mesmo e o que não, o que é suportável e o que não, ou seja, o reconhecimento dos próprios limites e desejos.
A partir daí será possível, também, respeitar o outro e suas limitações, mesmo que isso signifique um distanciamento ou uma separação.
Forçar que o outro mude, inculcar culpa pelo mal-estar que causou fala sobre a parte infantil, invasiva e vingativa que habita em si, quando se deseja ter o poder de convencer e transformar o outro ou, ainda, suprir tudo que ele necessita para que então um milagre ocorra.
A vida apresenta muitos desafios, inclusive lidar com a onipotência infantil que, em maior ou menor medida, todas as pessoas têm, assim como vestígios e traços infantis.
As relações próximas removem e despertam essas partes, uma vez que se fica mais vulnerável ao baixar as defesas frente a elas, sejam relações de amizades, amorosas, familiares ou parentais (seja na posição de pais ou de filhos).
Em uma análise pessoal o sujeito possivelmente conseguirá estar mais ciente dessas dinâmicas, faltas, desejos e formas de se relacionar, pois permite ressignificar e elaborar o que o conduziu, cegamente, inconscientemente, para relacionamentos como esses, evitando, assim, uma repetição futura.
Outra questão fundamental é compreender por que as manipulações enlaçaram, por que as chantagens emocionais funcionaram, pois nem sempre funcionarão e não terão o mesmo efeito em todo mundo - nem a mesma resposta.
Ainda, urge estar consciente que quando acontece um distanciamento ou separação os sentimentos não desaparecem, nem as memórias são apagadas.
E, por mais lógico que isso possa parecer, ao se estar vivenciando relações que causam sofrimentos intensos e profundas inquietações, nem sempre isso é tão nítido.
Será um processo que envolve a tristeza do luto, uma vez que a relação, simbolicamente, morre, e com ela muitos sonhos e projetos, inclusive o de se ter uma família feliz e unida, quando o narcisismo circunda as relações familiares e amorosas.
Uma emoção de muita valia para desligamentos ou distanciamentos emocionais de alguém é o ódio.
É um afeto de muita força e tem uma função importante ao revisar o que no outro, ou naquela relação, era insuportável. Assim, o outro, antes misturado, “simbiotizado” ou fusionado, passa a ser um outro diferente, com suas questões, limitações e dificuldades e será possível, então, olhar para as suas próprias coisas, mudando o foco de atenção e investimento.
























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